O Passado de Leniénn
Kalag 9 sob Wynn, 1400 CE
09:00
- Luna? - Chamou Diokkenes gentilmente, a voz de touro velho, normalmente ríspida ou didática, agora com um tom agudo de incerteza. - Você sabe que dia é hoje, não sabe?
Nenhuma resposta veio do aposento escuro para o qual o filósofo dirigia suas perguntas sem entrar.
- É o aniversário do pequeno Lénienn. Seu filho completa 8 anos hoje. Sabe, para um meio-elfo como ele, isso provavelmente significa cerca de um décimo da vida, e isso se viver bem.
Ainda sem resposta. Diokkenes não a condenava. Poderia puni-la por negligenciar seu trabalho por tantos meses, é claro. De fato, outros minotauros talvez a tivessem abandonado ou forçado a trabalhar. Mas para o filósofo, isso não seria cuidar. Não seria proteger. Não seria realizar o dever do forte para com o fraco.
O ano de 1400 não era apenas o ano em que um pequeno meio-elfo completava 1/10 de vida. Era o ano em que completavam-se quinze anos desde a queda de Lenórienn, e um ano desde a partida de Zera.
Nenhum elfo estava tendo tempos fáceis. A quantidade deles se entregando à escravidão, que antes era exclusiva de humanos e raros meio-elfos, vinha aumentando a cada ano, pouco a pouco. Era apenas esperado para Diokkenes: Afinal, um reino orgulhoso que mal aceitava dialogar com outras raças, tidos como os mais arrogantes e desumildes por mais de 1300 anos... De repente à mercê do Reinado. Diokkenes nunca perguntara, mas tinha certeza que Luna fora uma vez uma nobre e altiva elfa, uma donzela que vivia do luxo... Talvez por centenas de anos. E lá estava ela quando a encontrou: Suja de barro, atacada por humanos mercenários querendo roubar-lhe a pureza. Como ela teve sorte que o filósofo viajava a Tyrondir para visitar um amigo naquele dia...
Mas agora lá estava ela novamente. Abandonada por seu povo, por sua deusa... E agora por seu amado. Não culpava o meio-gênio também. Um homem deve ser livre. Os fortes têm o direito de ser livres. É essa a filosofia de Tauron.
E ouvindo apenas um choro abafado, Diokkenes decidiu não insistir.
- Lénienn! - Chamou ele, indo até a sala.
- Sim, meu mestre? - Respondeu o garotinho, disciplinado.
- Apronte-se. É seu aniversário e lhe darei este ano um presente físico e um mental, como bom filósofo que sou. Para isso preciso que venha comigo até o mercado.
- Mas, mamãe...
- Luna não pode nos acompanhar. A comemoração deste ano será de mestre para discípulo. De senhor para escravo.
- Sim, senhor.
Kalag 9 sob Wynn, 1400 CE
13:00
O mercado estava movimentado aquela tarde. O dia do Arcano não é exatamente uma comemoração popular em Tapista, mas havia um teatro público divertindo a todos próximo a uma àgora, aparentemente todo composto de jovens meio-elfos escravos. Era a primeira vez que Lénienn via outros como ele, e ficou maravilhado com como atuavam, tocavam e dançavam alegremente, ignorando as correntes em seus pescoços.
- Conveniente. - Comentou Diokkenes. - Pretendia mesmo te perguntar qual instrumento tens mais interesse em aprender a tocar. Agora podes vê-los em uso antes de se decidir.
Assistiram à peça juntos. Era um teatro que representava A Revolta dos Três, uma misteriosa lenda sobre três deuses caídos que traíram o Panteão. Lénienn assistia quase que num transe ao rufar dos tambores, o soprar das flautas e o tocar dos bandolins. Queria aprender todos.
Diokkenes tinha contatos, é claro. Um grande minotauro também filósofo de Tauron e amigo, o bardo Kiske, foi apresentado ao pequeno Lénienn naquela tarde.
Kiske era um minotauro estranho: Ele cumprimentou Lénienn como se fosse um igual, mesmo se tratando apenas de uma criança escrava. Parece que na sua filosofia, todos são iguais aos olhos de Tauron, e o dever de proteção/servidão que separa os fortes dos fracos não deve fazer com que nenhum dos lados seja tido como inferior ou superior: Isso é pura arrogância dos fortes. O servo deve entender que servir é seu dever, e fazer isso de bom grado, assim como o protetor (Kiske se recusa a usar a palavra "mestre" ou "senhor") deve proteger também de bom grado, pois é isso o que cada um deve fazer. A relação deve ser de amizade e não de tirania. Esse pensamento, é claro, fazia com que Kiske não tivesse uma fama muito boa entre a orgulhosa sociedade táurica, mas ganhava a admiração e o apreço de Diokkenes.
- Prazer em te conhecer, jovem Lénienn, o meio-elfo de Diokkenes! - cumprimentou ele energicamente, apertando a mão do garoto. - Eu sou Kiske, Bardo e Filósofo do maior dos deuses, ao seu dispor.
A partir daquele dia, Lénienn tomou aulas de artes e música com Kiske, todos os fins de semana, com a permissão e o encorajamento de Diokkenes, que não queria ver o jovem crescer sem nenhuma perspectiva, além de sem pais atenciosos...
Um presente físico e um mental...Um alaúde e um professor.
Valag 15 sob Luvitas, 1404 CE
16:00
— Você já superou seu professor no alaúde, jovem Leniénn!
— Está exagerando, senhor Kiske!
— Não mesmo, falo sério! Não se subestime, meu jovem. Você sempre teve muito talento para as artes. Venha, por hoje já estudamos o suficiente, vamos beber algo antes que aquele touro velho venha te buscar.
Kiske falara em tom de brincadeira, mas era verdade que ele era um minotauro muito mais jovem e robusto que Diokkenes. Ele tinha a cabeça mais semelhante a um gnu do que a um touro, com uma longa crina, à qual ele se referia como cabelo e era frequentemente criticado por outros minotauros que diziam que "cabelo é coisa de elfos".
Os dois estavam descansando um pouco enquanto esperavam o horário do meio-elfo voltar à casa de seu senhor, que era um pouco afastada da cidade. Estavam sentados em cadeiras no grande e belo jardim de Kiske, onde praticavam. Leniénn era muito feliz ali. Diokkenes era um bom mestre, mas Kiske era o único que o tratava como um amigo, e não como um escravo. Riam e bebiam suco feito com as uvas frescas que cresciam ali mesmo, junto com algumas concubinas humanas que serviam a todos mas também eram tratadas mais como esposas de Kiske do que escravas.
Foi quando ouviram as trombetas.
— O que está acontecendo, mestre?
Kiske ficou mais sério do que Leniénn jamais o havia visto. Ele olhava para o leste, onde algo colossal se movia acima das nuvens, ainda não visível mais do que sua silhueta dracônica.
— Acho... Que estamos sob ataque. Escondam-se.
O jardim de Kiske não ficava no primeiro andar, era um lugar alto. Dali, era possível ver um grande número de minotauros correndo desesperadamente... Mas não estavam fugindo para a direção oposta: Estavam correndo em direção à ameaça. Essa é a cultura de Tapista. Um minotauro está sempre disposto a proteger seu reino. Sem medo. Sem hesitação.
Ou pelo menos era assim que havia sido nos últimos milhares, talvez milhões de anos.
Até que soou o primeiro rugido.
A casa e o jardim de Kiske ficavam sim na capital Tiberius, mas não era nem remotamente perto do centro. Estavam no finzinho da cidade, do lado oposto da ameaça. Estavam bem longe. Muito longe. Uma distância que, para qualquer outra ameaça, seria considerada uma distância segura. Mesmo que a própria Aliança Negra estivesse adentrando a cidade, estavam numa distância onde havia tempo para os escravos fugirem sem se desesperar.
Mesmo assim precisaram tapar os ouvidos. Mesmo assim tremeram de medo. Mesmo assim, pela primeira vez em sabe-se lá quantos éons, os minotauros de Tapista hesitaram. Mesmo assim, sentiram o urro alienígena invadindo seus ouvidos.
Foi o primeiro rugido que Tapista ouviu saindo da gigantesca boca que engoliria tantos de seus cidadãos.
O primeiro rugido que Tapista, e que Leniénn ouviu...
...do Dragão da Tormenta.
Valag 15 sob Luvitas, 1404 CE.
16:15 a 18:00
Flash: Correria. Gritaria. Minotauros insanos. Minotauros ignorando o medo e bradando "Por Tapista!". Um minotauro fugindo da batalha, apavorado. Outro minotauro percebendo e matando-o como traidor. Um minotauro afetado pela insanidade, paranóico, acha que o assassino é que virou um traidor e está matando outros minotauros. Briga. Minotauros contra minotauros. Ao longe, a figura alienígena colossal do Dragão Rubro, com seu corpo feito de cadáveres avermelhados de dragões, engolindo legiões de minotauros. Os engolidos sorriam insanamente, como se estivessem felizes de ser devorados e mastigados. Kiske entra na frente dessa visão. Algo o atinge. Ele estava protegendo alguém. Protegendo a MIM. Kiske sendo atacado por outros minotauros. Kiske no chão. Ele não para de tentar se levantar, mesmo isso fazendo com que eles não parem de atacá-lo. Está me dando tempo para fugir. Minhas pernas não respondem. Diokkenes surge. Está me carregando. Escuridão.
Flash: O chão se move. Estou sendo carregado. Vejo as roupas de meu mestre. Ele está me carregando. O céu está rubro. Dragões de todas as cores atacam o colossal Dragão alienígena. Escuridão.
Flash: Minha mãe. Diokkenes está dizendo algo. Ele está preocupado. Ela segura algo nas mãos. Algo reluzente. Algo afiado. "Luna, pare!!". Vermelho. Líquido rubro como o dragão colossal. Sangue. De quem? Olhos belos virados para mim. Mortos. Minha mãe. Pescoço degolado. Diokkenes cobre minha visão. Escuridão.
"Vai ficar tudo bem, pequeno Leniénn. Não vou permitir que viva aqui, onde essas memórias o assombrariam para sempre. Vou vendê-lo a um amigo de Valkaria. É um humano, mas é um bom homem e fiel a Tauron."
"Vai ficar tudo bem."
-
Estas são as últimas memórias de Leniénn de antes de sua vida em Valkaria...
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