As Tribulações de Ariénn
— Argh! Não acredito! Não acredito que nos despistaram!!
Ariénn não podia ouvi-lo, é claro. Perdera a audição já fazia anos. Mas tinha certeza de que Morialla estava gritando. Conhecia seu irmão como ninguém. E respondeu a ele:
— Fique calmo, Mori. Vamos encontrá-los.
— Está brincando? Você não se lembra da conversa que ouvimos? Da magia de disfarce que usaram? Aqueles malditos estão indo para a Montanha de Ferro! Se entrarem lá, vão morrer, com certeza!
Ela mantinha a cabeça erguida apenas o suficiente para ler os lábios de Mori. Não gostava quando o irmão mais velho se exaltava e ficava irritado.
— Bem, eles TÊM um anão de verdade no grupo.
— Tanto faz!!! - cuspiu ele - Mesmo que sobrevivam, e mesmo que consigamos achá-los de novo quando saírem, quanto tempo acha que teremos que esperar por esses malditos? Não temos tempo para brincar de olhar o coelho saindo da toca!
Ari suspirou.
— Podemos encontrar outro devoto de Glórienn.
— E começar tudo DE NOVO?! A investigação, o plano de assassinato? PIOR AINDA, deixar que nossos alvos escapem vivos? Berforam nunca vai nos aceitar na elite, nos verdadeiros Garras de Tenebra, se simplesmente permitirmos isso. Sinceramente eu já ficaria surpreso se ainda formos aceitos depois que ele descobrir que falhamos no primeiro ataque.
— Não foi culpa nossa. O plano foi feito e posto em prática com perfeição. Imprevistos acontecem.
— Eu sei. Não tínhamos como prever que aquele lagarto teleportador esquisito iria aparecer sabendo tantas magias novas de repente. Mas mesmo assim, se adaptar à situação faz parte do que é ser um assassino. De qualquer forma--
Ele parou de falar abruptamente e freiou o cavalo. Ari se assustou e olhou ao redor, alarmada.
Uma criatura estranha os observava, apoiada na entrada de uma caverna não muito longe da estrada. Parecia um elfo, só que alto e com traços brutos, contrários à tradicional beleza natural dos elfos. De fato, parecia quase que deformado, com o queixo muito longo e as sobrancelhas projetadas. Sua pele era branca como a neve - Não, mais branca do que a neve, e seus olhos brilhavam intensamente. Na bocarra, dentes afiados dançavam num risinho divertido, como de quem observa dois cachorrinhos correndo atrás do próprio rabo. Trajava roupas negras e elegantes que pareciam feitas de algum tipo de couro que eles nunca haviam visto. Os braços, cruzados, terminavam em dedos enormemente longos, que tamborilavam como se estivesse pacientemente esperando os elfos notarem sua presença.
Ariénn sacou a espada.
Capítulo 2
A verdade é que Ariénn não queria se tornar uma Garra de Tenebra. Não queria matar elfos. Não queria matar ninguém. Mas ela não sabia contrariar o irmão, e os elfos negros a tratavam muito bem... Estar entre eles era como estar em família de novo. Até ensinaram a ela a leitura labial, para contornar a surdez que ela provocara em si própria durante a guerra, para parar de ouvir os gritos de seus pais quando foram capturados e torturados pelos bugbears.
Naquele dia em que os elfos e o goblin Hilluk foram capturados pelo exército em Valkaria, poderia ter sugerido salvar o devoto de Glórienn para o bem da missão, para concluirem o assassinato. Ao invés disso, sugeriu que trocassem de alvo pois não valeria o esforço, e secretamente o salvou mesmo assim.
Ela própria não sabia por quê. Talvez apenas não suportasse o pensamento de que mais um elfo seria torturado...
Para seu azar, acabaram os encontrando de novo quando saíam de Valkaria, e a missão foi retomada. Precisam mostrar seu valor a Berforam, o líder dos elfos negros. Precisam eliminar um elfo que ainda ouse adorar a traidora deusa Glórienn.
Na verdade estava aliviada que o devoto e seus companheiros conseguiram fugir. Estava feliz de saber que não conseguiriam encontrá-los, mesmo que isso significasse que procurariam outro devoto para matar de qualquer jeito... Pelo menos por enquanto não matariam ninguém. Quem sabe até encontrarem um outro alvo, a situação já tenha mudado e não seja necessário matar? Quem sabe Berforam não fosse tocado por Marah e cancelasse todas as missões de assassinato?
Mas o sorriso daquela criatura vil parecia dizer justamente o contrário. A careca branca que se escondia nas sombras da caverna parecia zombar dos longos cabelos dos elfos, as branquíssimas orelhas pontiagudas exibidas como se provocassem dizendo que há semelhanças entre eles.
O brilho perverso nos olhos daquilo... Como se estivesse olhando para duas presas fáceis.
Ariénn tinha um mau pressentimento.
Capítulo 3
— O que diabos é você? - Perguntou Morialla, sem se mostrar intimidado.
A criatura apenas deu um risinho de leve. Morialla perdeu a paciência e sacou o arco, apontando uma flecha.
— Acalme-se, acalme-se, pequeno elfo.
A voz gutural do monstruoso "elfo branco" causou náuseas no elfo negro. Ariénn, é claro, não podia ouvir, mas observar os lábios nojentos da criatura se contorcendo em fala também a enjoou. Nenhum dos dois deixou transparecer seus arrepios.
— Eu sou Zzrorak. - Ele fez uma reverência exagerada e cheia de mesuras - Permita que eu me explique: Acho graça pois ouvi que procuram criaturas a caminho de uma tal Montanha de Ferro. Você se refere ao reino dos... - ele parou e cuspiu no chão, antes de dizer - ...anões, não é mesmo? E me parece que vocês acreditam ser impossível para vocês, elfos, chegarem até lá?
Morialla riu e voltou a guardar sua arma:
— Hahaha, vamos embora, Ari. Não sei que tipo de maluco é esse cara, mas ele fala como se fosse capaz de nos levar a Doherimm, mesmo não sendo um anão. Só pode ser um lunático ou um sszzaasita, todo mundo sabe que os anões não contam seus segredos a nenhuma raça inteligente.
Zzrorak, aparentando ainda mais sarcasmo e arrogância que Mori, também gargalhou, uma risada gutural que mais parecia o som de um demônio da tormenta vomitando carne humana, e disse:
— Bem, um sszzaasita eu certamente não sou. - E ergueu um talismã muito habilmente talhado em bronze, com o símbolo de...
— Megalokk...? - Foi Ari quem não conteve a surpresa - Acho que é a primeira vez que vejo esse símbolo com tantos detalhes... É raro que uma raça com habilidade e inteligência para a arte adore esse deus.
— Talvez... - Grunhiu Zzrorak, antes mesmo que ela terminasse de falar - ...Talvez a minha raça não seja de fato inteligente. Talvez eu seja a exceção à regra. E talvez os anões não esperassem que eu fosse capaz de entendê-los enquanto sussurravam seus segredos sobre os túneis uns para os outros.
Os elfos negros se entreolharam. O que aquela criatura odiável dizia era plausível. Ariénn não estava gostando nada disso: ela estava prestes a dizer que Mori tinha razão e provavelmente a criatura era um sszzaasita que forjou o medalhão para enganá-los, mas a voz gutural do monstro surgiu telepaticamente em sua cabeça, assustando-a, já que era o primeiro som que ouvia em muitos anos.
"É feio enganar seu irmãozinho, pequena elfa."
"O quê?!" - Respondeu ela mentalmente, de forma um tanto automática.
"Sua mente é um livro aberto" - riu ele - "você não quer o mesmo que seu irmão, não é? Não deseja matar o elfo. Mas como seu irmão ficaria decepcionado se soubesse..."
Ele abriu a boca de forma exagerada, ameaçando falar algo.
— O que foi? - Bradou Morialla, que estava confuso, olhando de sua irmã para o outro, sem entender por que ambos pareceram por um momento que iam dizer algo mas se calaram.
"Por favor...!!" - Ari estava prestes a chorar de desespero, e aquilo parecia divertir ainda mais Zzrorak - "...Não conte a ele!"
— Se vierem comigo - disse Zzrorak em voz alta, finalmente - não precisarão desistir de suas presas, e muito menos ficar aí parados esperando que eles voltem do subterrâneo.
— E vai pedir o quê em troca, demônio? Nossas almas?
Zzrorak riu com gosto, como se bem no fundo ele de fato desejasse as almas dos elfos, mas respondeu:
— Não, não. Ficarei feliz o suficiente se vocês matarem um ou dois anões no caminho. Não sei se já perceberam, mas eu ODEIO anões!
E com isso ele os deu as costas, adentrando a caverna. Morialla desceu do cavalo, aparentemente satisfeito com a resposta, e seguiu a criatura. Ariénn queria pará-lo.
Queria mais do que tudo pará-lo.
Mas ainda ouvia a risadinha gutural e horrorosa, cantando ameaçadoramente em sua cabeça...
E seguiu os dois para a escuridão da caverna.
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